Escolha

"Enfim, o filme de gênero é uma forma de expressão coletiva, um espelho voltado para a sociedade, que incorpora e reflete os problemas em comum e os valores dessa sociedade. A crítica de gêneros, por exemplo, considera que os musicais dos anos 30 podem ser explicados como uma fantasia escapista da Depressão; que o filme noir dos anos 40 expressa primeiramente as mudanças sociais e sexuais ocasionadas pela Segunda Guerra Mundial e, depois, a desilusão reinante após o conflito etc"

(A.C. Gomes de Mattos, Do cinetoscópio ao cinema digital: breve história do cinema americano, Editora Rocco)


Não somente o Cinema, mas qualquer manifestação artística direcionada ao consumo em massa reflete o contexto social, político e cultural. Nos quadrinhos, por exemplo, o Capitão América surgiu em 1941, esmurrando Hitler em sua primeira capa. Na literatura, autores como Dashiell Hammett e Raymond Chandler lançavam seus detetives cínicos e desiludidos em romances policias ambientados no final da década de 30, ainda amargurando os efeitos da Grande Depressão.

O diferencial do cinema, entretanto, é o seu alcance: ao contrário dos quadrinhos e dos livros, uma única cópia de um filme pode ser apreciada por centenas de pessoas simultaneamente, além de não exigir alfabetização para o entendimento da obra (não considerando as legendadas, obviamente). Além disso, a produção de um filme é milionária e mobiliza um imenso número de profissionais em sua realização, fazendo os estúdios adotarem todas as medidas possíveis para aumentar a margem de lucros e reduzir a de prejuízos, como qualquer empresa comercial; medidas como, por exemplo, a inclusão de cenas esperadas de romance ou ação (ou exclusão de cenas com forte conteúdo violento ou sexual) para conquistar um público maior.

Os filmes de gênero fazem parte desta estratégia. Se é anunciada uma comédia romântica adolescente, já se tem idéia do que será exibido. Considerando que, após o sucesso de X-Men e Homem-Aranha, os filmes de super-heróis baseados em quadrinhos já constituem um gênero cinematográfico, vem a pergunta: o que caracteriza um filme de super-herói, além da condição de seu protagonista? Grandiosas cenas de ação? Superpoderes? O herói salvando a mocinha e o mundo?

Sim. Com algumas variáveis e exceções, era a regra geral. Até assistir O Cavaleiro das Trevas.

Batman é um super-herói. Não tem superpoderes, mas transmite uma imagem fantástica a fim de causar tal impressão. Uma imagem de medo. Assumiu a tarefa de proteger Gotham City e, para isso, conclui que não pode respeitar as suas leis. Sua figura cresce tanto que inspira confiança receosa e um medo curioso. Até despertar outra figura fantástica que carrega o carta do coringa.

Determinar herói e vilão e suas características mais marcantes faz parte do gênero de super-herói. E O Cavaleiro das Trevas pára de fazer o esperado aqui. Há o confronto dos antagonistas, há cenas de ação, mas num ambiente pessimista, urgente, sem glória, como se a justiça cambaleasse diante do crime, mas nunca caindo totalmente. É um espelho da sociedade (ainda que conte com um morcego vigilante e um palhaço anárquico); da lei não acompanhando a justiça; do mal súbito, inexplicável e adormecido enquanto o homem não chega ao limite de seus esforços. É uma reviravolta no gênero, que o eleva a um novo patamar ao mesmo tempo em que o desconstrói. Não é de se estranhar que o filme receba de muitos veículos a classificação cinematográfica "policial". Mais correto seria drama policial.

Não há crença em milagres ou destino. Não há esperança, mas também não há desistência. Somente há confiança nas próprias ações, e esse comportamento encontra seu ápice nos dois antagonistas, cada um reforçando as próprias idéias diante da figura adversária. Tal reforço inevitavelmente identifica uma ligação entre os dois lados. Como disse a crítica Isabela Boscov, "o mais existencialista dos super-heróis ganha, assim, um adversário que é o seu exato oposto e complemento – um niilista".

Batman se adapta e reage aos desafios que sua metrópole impõe. Gotham City orienta seus passos. O Coringa, por sua vez, realiza o contrário: ameaça e faz a cidade seguir seus interesses até Batman interferir. Uma eterna ciranda que atinge seu clímax perto do fim, justamente quando troca seu compasso: Gotham oferece uma resposta que surpreende o palhaço e Batman antecipa o comportamento da população e faz com que ela siga o seu plano. É quando fica evidente o lado mais humano de qualquer herói ou vilão: sua capacidade de avançar para o bem ou para o mal, controlando sua própria vida para a nobreza ou para a tragédia, arcando com as conseqüências de cada decisão.

"Batman escolheu ser Batman. Nada determinava a sua escolha (...) O que a sua legenda nos diz, e talvez por isso dure tanto, é que o ser humano é cheio de imperfeições e maus impulsos, limitado pela biologia e condicionado por mitos e tradições, mas é livre para escolher o que quer ser. E decidir ser justo."


(Luiz Fernando Verissimo)

Não podemos viver sempre em extremos. Se de um lado está Batman e seu manto negro e de outro está o Coringa vestindo suas cores, a maioria de nós está no meio, vendo a vida em tons de cinza.

2 comentários:

Anônimo disse...

E eu preciso assistir esse filme. Acho que vou ali ver agora! :)
e eu li isso do Luiz Fernando no jornal, tudo andava me deixando com vontade de ver Batman e agora tem mais tu! hehe
não aguento! :)

CrápulaMor disse...

Não assisti Batman ainda. Estou há semanas planejando com turmas diferentes e nunca dá certo. Mas eu também acredito na relação entre as produções artísticas e os contextos sociais.

O próprio Cinema surgiu a partir de uma conjuntura social marcada por grandes transformações e pela necessidade de estímulos midiáticos mais dinâmicos.

O Cinema surge em um momento de forte expensão das metrópoles, e o ambiente metropolitano impunha ao homem moderno uma série de estímulos visuais e cognitivos sem precedentes. A fotografia inaugurou um processo de capturação material da realidade, e vinha proliferando-se pelas cidades, ocupando todos os espaços e levando imagens para públicos e lugares inéditos. O Teatro, o Circo, os Museus, todas os espetáculos e formas de representação alcançaram um novo patamar. Desta maneira, o sujeito da modernidade passou a demandar, cada vez mais, expressões artísticas e formas de entretenimento mais elaboradas, que a fotografia não conseguia mais satisfazer. À imagem estática foi acrescentado o movimento. Em seguida, o som. Surge o Cinema, cujo sucesso só foi possível porque o momento histórico era propício, e a sociedade apropriou-se do seu uso. Eu arrisco dizer que não são as técnologias que geram transformações coletivas. São as transformações coletivas que geram novas tecnologias. A Internet é a comprovação maior desta tese. Mas isso é uma outra história...

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